domingo, 14 de maio de 2017

JUSTIÇA PARA SANTANINHA


Os esforços envidados pelos poetas e pesquisadores Arievaldo Viana e Stelio Torquato Lima para trazer à baila a fascinante e fugidia personagem Santaninha, pseudônimo de João Santana de Maria, pioneiro da literatura de cordel brasileira, representam um salto qualitativo poucas vezes visto nos estudos da poesia popular. A certeza fulminante advinda da pesquisa, agora transformada em livro, é a de que a cronologia do cordel precisa ser urgentemente revista. Santaninha antecede, em pelo menos duas décadas, Leandro Gomes de Barros (1865-1918), o paraibano genial que nos legou alguns dos maiores clássicos do gênero.

Por que, então, seu nome não consta ou é citado marginalmente por uma reduzida gama de pesquisadores? Por que não há qualquer referência a ele no Dicionário biobibliográfico de repentistas e poetas de bancada, de Átila Almeida e José Alves Sobrinho?

Bem, são muitas as perguntas, e os autores deste livro respondem à maior parte delas com a desenvoltura de quem foi além das fontes primárias. À parte a conhecida e repisada citação de Sílvio Romero em seus Estudos da poesia popular, Arievaldo e Stelio recorreram a acervos, recortes de jornal e obras de referência há muito fora de circulação. Se Santaninha, a princípio, era uma personagem distante, quase evanescente, a pesquisa criteriosa, deu-lhe um rosto, esboçou traços de sua personalidade e reconstruiu sua trajetória de migrante que deixou o Ceará e se instalou no Rio de Janeiro, tornando-se, na capital federal, um cronista popular. Citei-o brevemente, reproduzindo, em nota, o verbete do Barão de Studart que também consta deste volume. Sabia de sua importância, mas não fazia ideia de como inseri-lo no universo da literatura de cordel, tal como se estabeleceu a partir do modelo legado principalmente por Leandro Gomes de Barros. Este livro faz isso muito bem e vai além.

Para começo de conversa, Santaninha não era um poeta tradicionalista como Leandro e os demais pioneiros, longe disso. Seu arsenal compunha-se, majoritariamente, de folhetos-reportagens e de relatos históricos, como o célebre registro da guerra do Paraguai, merecedor da atenção de Sílvio Romero. Leandro também se ocupou de temas históricos e circunstanciais, mas, com um faro mais apurado, por possuir a centelha do gênio, dedicou-se, também, aos grandes temas universais, extraindo das velhas histórias ouvidas no sertão paraibano (A peleja de Manoel Riachão com o Diabo, História do Boi Misterioso) e da poesia tradicional, fonte dos “livros do povo” (Os sofrimentos de Alzira, A donzela Teodora) os motivos delineadores da poesia popular imortalizada no Nordeste.

Santaninha não possuía essa bagagem e, nem por isso, deixou de ser, em seu tempo, um poeta invisível. Faltou-lhe, talvez, se o compararmos a Leandro, um cuidado maior na elaboração de seus versos, carecedores de retoques, numa época em que as regras ainda não estavam claramente definidas. Rimas toantes são muito comuns em sua obra, assim como frequentaram, às fartas, a obra de Silvino Pirauá de Lima (1848 ou 1860-1913), que pertencia ao universo da cantoria e só no Recife, no início do século XX, publicou os seus romances.

A atribuição da introdução da sextilha na poesia popular a Pirauá cai por terra quando vem a lume a obra de Santaninha. Por influência dos estudos pioneiros de Sílvio Romero, que fez escola, tendia-se a considerar a sextilha uma evolução natural da quadra, quando, de verdade, são modalidades estróficas que sempre coexistiram, embora, no cordel, a primeira tenha se tornado preponderante. Essa visão evolucionista, ainda hoje repetida em oficinas e palestras, é impactada pelos poemas publicados neste livro, como o contundente A seca no Ceará, que traz sextilhas como esta:

Deus é quem sabe de tudo,
O homem em nada imagina.
Quando ninguém esperava,
Pelas culpas, esta ruína,
Foi quando Deus das alturas
Baixou sua disciplina.

Não é absurdo, portanto, imaginar que os versos de Santaninha fossem conhecidos por Leandro Gomes de Barros e Francisco das Chagas Batista, cujo trabalho editorial, de alguma forma, se inspirava no empreendimento de Pedro Quaresma, no Rio de Janeiro. Sobre essa importante casa publicadora, escreveu a pesquisadora Vilma Quintela:

(...) cumpre ressaltar que o advento do cordel brasileiro como um sistema literário relativamente autônomo relaciona-se, fundamentalmente, com a história da edição popular no Brasil. Nesta, como foi dito acima, destaca-se como pioneira a Livraria Editora Quaresma, que atuou no Rio de Janeiro desde as últimas décadas do século XIX até meados do século XX. No cenário da belle époque carioca, dominado por editoras estrangeiras, tais como a Laemmert, a Garnier e a Francisco Alves, que atendiam sobretudo a uma elite cultural e econômica, o brasileiro Pedro Quaresma se estabeleceu, no final da década de 1870, difundindo, em várias partes do Brasil, incluindo o Nordeste, uma literatura feita em boa parte de encomenda para atender a um público semiletrado, então, emergente. [1]

Embora não tenhamos provas documentais, não é difícil imaginar que não somente Leandro e Chagas Batista, mas, também, João Martins de Athayde, continuador da saga de Leandro, leram Santaninha e tiveram nele um modelo. Modelo imperfeito, é verdade, mas, ainda assim, digno de ser lido, merecedor de aplausos pelo papel que lhe tem sido negado até agora: o de desbravador do cordel, que, como todos os pioneiros, tateando no escuro, conseguiu imprimir a sua marca.

Que este livro seja o primeiro passo para que se lhe façam justiça. Aos autores, nosso aplauso e nossa gratidão.





[1] QUINTELA, Vilma Mota. “A edição popular no Brasil: o caso da literatura de cordel”. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n. 35. Brasília, janeiro-junho de 2010, p. 41-50.

Nota: Santaninha (IMEPH), um poeta popular na capital do império, foi lançado na bienal do Livro do Ceará. 

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